quinta-feira, 14 de maio de 2009

O Segredo

Se você ainda não é um artista, provavelmente não sabe da existência destes meros coadjuvantes.

São como aqueles que em cima duma prancha procuram algo denominado “a onda perfeita”.

O Surfista tem nome. Surfista é seu nome.

Não, este documento não é sobre Surf, é sobre Som.
Quando digo Surf várias coisas acontecem comigo: vejo ondas praia areia sal vento cores cheiros gostos. É bem específico. Todos concordam que há que ter tudo isso e algo mais para haver Surf.

Mas e o som? Quando digo som o que vem à sua cabeça? ...

Forma? Cor? Sabor? Cheiro? ... Estou aqui pensando faz uns 10 minutos e não consigo definir SOM. Voce pode dizer que o som é uma coisa que acontece com as moléculas do ar que se chocam e blogblogblog. Verdade.

Mas o foco aqui é a arte. A famosa Gioconda (Mona Lisa de Da Vinci) é sem dúvida uma tela de tecido onde deliberadamente foram colocados produtos químicos afim de se obter texturas e cores que em determinados angulos a luz reflete blogblogblog. É bem específico. E é verdade.

Não é preciso dizer que é impossível dizer o que é que há na Gioconda que a faz ser tão venerada. Particularmente não acho ela bonita, acho até feia, mas os especialistas parecem concordar que é uma obra de inestimável valor para a humanidade e que se fosse destruída seria uma grande grande tristeza, assim como foi a “reforma” da Capela Sistina.

Não , este documento não é sobre quadros, é sobre som.

O que tem então o som a ver com Surf e importantes quadros feios?

Bem, o som é como surfar sem ondas sem praia sem areia sem sal sem tintas sem telas e, no fim das contas, voce vai ter inteiramente grátis (deduzidos os custos de material) um quadro feio. ...

Caralho, então para que é que serve esta bosta? Não tem forma não tem gosto não tem cheiro não tem cor... e ainda assim , em plena crise mundial no ano 2009, grandes empresas de tecnologia investem muitos milhões de dólares em “música digital para conteúdo”. Bem, no fim das contas eles estão é investindo em som, não em quadros nem em surf, estranho.

O som está a nossa volta, muito mais que o surf e os quadros, direta e indiretamente. Precisamos do som, sem som nossa vida seria muito complicada. Como nos comunicaríamos? Nos transportes também a coisa complica. Imagina a cena: voce, o humano sem orelhas num mundo de humanos sem orelhas. Voce está dirigindo seu carro quando vê a sua frente 2 freiras 12 crianças um bombeiro e um gato. Seu carro não tem buzina mas tem faróis potentes. Voce pisa no freio, os pneus guincham violentamente mas voce não ouve porque não tem orelhas, nem as freiras crianças bombeiros as têm. Fortuitamente a potência dos faróis é suficiente para atrair a atenção dos transeuntes... É tarde demais, não há tempo suficiente para parar o carro nem para que os “sem orelha” se atirem numa manobra de sobrevivência. O impacto é fatal... e surdo. Só o gato, que tem orelhas, sobrevive. O animalzinho ouviu os pneus a guinchar. Mais tarde, no velório múltiplo, os choros não foram ouvidos, as preces também não, da salva de tiros para o bombeiro só se sentiu o odor da pólvora queimada e algumas fagulhas observadas com desdém. Voce teria na sua cozinha um microondas mas teria que ter também luzes espalhadas pela casa se quisesse saber quando a comida está pronta. Sem plimplim, não não. Se a luz queimar, top top. Todos os filmes seriam legendados, não teríamos música.

O som está mais presente do que se pode imaginar. Não percebemos isso porque não somos surdos. Paradoxo.

O sufista tem nome, o pintor tem nome mas e aquele que “trabalha” o som? Bem, “trabalhar” é um termo inacurado mas não existe nenhum verbo que expresse o ato de criar manipular modificar engrandecer enobrecer entender prever e reconhecer o som.

Existe o músico. Ele faz tudo isso com o som: cria manipula enobrece prevê reconhece etc. Mas ele “trabalha” o som? Às vezes sim mas é bastante raro e sempre por acidente. O som, para um músico, é o resultado. Ele não sabe muito bem como é que o som sai dali, nem o porque. Mesmo assim ele tem a habilidade de juntar notas ritmo e timbre para formar uma bela peça musical.

Embora o músico “trabalhe” o som, ele o faz de maneira inconsciente. Para um bom músico qualquer som pode virar música, mas é mais comum o músico usar sons predeterminados para compor uma canção do que usar a música para “compor” ou criar novos sons. Por exemplo: uma peça de Bach para órgão, tocatta e fuga em Ré menor, requer um grande aparato: o órgão. Para quem não sabe, órgãos de igreja podem ser gigantescos, alguns do tamanho de prédios e são bastante complexos. Que eu saiba, Bach nunca compôs para guitarra acústica mas, se eu pegasse esta mesma peça e, respeitando os limites do instrumento e da obra, poderia fazer com que fosse executável em uma guitarra acústica. Mesmo Bach poderia ter feito isso. Ainda assim a obra teria igual impacto. Seria a mesma música. Se voce conhece esta peça sabe que a reconheceria não importa qual fosse seu "som". Não se perderia com as limitações do instrumento e, se fosse feito pelo próprio Bach, provavelmente seria genial.

Concluo então que “músico” não é o termo adequado para aquele que “trabalha” o som. O som é vital para o músico mas não é seu objetivo. Bethoven compôs música sem nunca poder ouví-la. A música é uma coisa mental. Na verdade uma pessoa surda pode entender música e mais, pode até “escutar” uma música enquanto lê uma partitura, se aprender como fazê-lo. Escutar não seria bem a palavra, seria mais “ver” a música de uma maneira mental. Sem dúvida este surdo iria reconhecer a beleza das obras musicais apenas olhando para suas partituras. Muitos músicos não surdos são capazes de fazê-lo. Não acho complicado, acho bem plausível e não entendo como a comunidade dos surdos ainda não reclamou seu direito à musica. Seria como ensinar o som para quem não pode ouvir. Pena. Gostaria de comprar os Concertos de Brandenburg em braile. E depois aprender Braile. Cegos surdos e mudos, mas com música.

Depois existem os sound designers ou audio designers ou sonoplastas ou técnicos de som ou sound mixers ou produtores musicais e alguns outros tantos nomes que no fim significam a mesma coisa. É gente que “trabalha” o som . É seu objetivo. São aqueles que colocam os sons das explosões nos filmes, os tiros, o barulho do Titanic afundando e seu casco ganindo guturalmente, seu motor. Eles também trabalham para que voce espectador consiga entender tudo o que os atores dizem. A voz é uma coisa complexa. Gravar uma diálogo num set de filmagens é trabalho árduo. Os atores nem sempre falam da mesma maneira e depois de 3 ou 4 takes voce tem sons de voz inteiramente diferentes para cada take. Quando o diretor vai montar o filme, ele escolhe parte do diálogo do take 1 e o resto do take 4 que foi o take considerado “bom”. O equipamento é o mesmo em todos os takes assim como todo o aparato parafernálico. Surpresa: o som do take 1 é diferente do take 4 e o som da sala muda com a mudança de takes (se voce colocar um microfone numa sala vazia e gravar voce verá que cada sala tem a sua “ambiência”, seu som). Começa a guerra. Nem todos os profissionais do cinema entendem que não é possível preservar o som de uma voz para que ela se comporte de determinada maneira. Fato: sound designers não tem como manipular o som in loco, mas eles podem substituí-los depois. Voce não pode imaginar a quantidade de cenas onde o som é totalmente reconstruído por sound designers, desde as falas dubladas dentro de estúdios pelos próprios atores ao barulho dos passos, as roupas roçando enquanto o ator anda e se mexe, os barulhos ambientais mar vento pássaros carros aviões trens etc...

A verdade é que a comunidade dos sound designers é predominantemente composta por técnicos. Lembro-me de quando eu comecei a me interessar por esse assunto (que eu não sabia bem o que era ou como chamá-lo) e fiquei impressionado com os profissionais da área de gravação, aqueles que estavam ali para registrar em fita magnética (na época) a obra daqueles músicos que, na época, eram extremamente competentes. Um daqueles músicos era eu, que pertencia à ala dos desesperados, reservada aos músicos incompetentes (na época).

Estes profissionais da gravação eram extremamente... profissionais. Sabiam tudo a respeito do grande segredo que acontece do lado de lá do aquário*, sobre assuntos míticos como: microfones equalizadores monitores de referência e cabos de ouro para não dizer aqui coisas como: transientes, Fletcher-Munson, bus compression, FFT e side-chain. Isso me impressionava grandemente. Sendo filho de um cientista sabia que aquilo devia ser realmente algo importante. A conversa entre os técnicos era hermética. Eu entendia muito pouco e achava fascinante. Eu perguntava sobre tudo, era um puta dum chato e nem sempre os técnicos tinham saco para ensinar noobs* como eu. Apesar do discurso técnico, das declarações feitas quase de maneira sacra sobre como tirar o melhor som disso ou daquilo, estes técnicos não sabiam nada sobre música. Nada sobre música nem nenhum outro tipo de arte. Também não gostavam de ler e só sabiam a matemática que aprenderam na escola.

Para mim isso era muito estranho. Como é que as pessoas que vão gravar nossas músicas não sabem nada de música? Paradoxo. Como alguém que trabalha com artistas não tem interesse algum por arte de nenhum tipo?

Seus interesses eram mics cabos caixas consoles. A arte não tinha a mínima importância. Aliás, a impressão que dava era que nós músicos éramos um mal necessário, um tipo de sub-espécie usada como cobaia em seus laboratórios sonoros. E ainda cobravam por isso. Hoje acredito que não passava de um bando de filhos da puta.

http://www.soundclick.com/DanielEboli
http://www.soundclick.com/TheRingtonesProject
http://www.myspace.com/danieleboli
Ouça Daniel no http://www.ubetoo.com

2 comentários:

  1. Um artigo digno de um artista e sábio como você meu caro amigo!
    Bjs e saudades desde esta a minha pátria Lusa que me acolheu...

    Sandra Ramírez

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  2. Bem vinda Sandra! Minha primeira seguidora!
    Beijos a todos aí na terrinha!

    Volte sempre.

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